quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O Direito em cores

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a norma suprema que atualmente delimita o nosso ordenamento jurídico, constituindo-se de uma abordagem moderna e democrática para épocas passadas. Tem como característica principal, a extensa preocupação com vários direitos que outrora foram suprimidos pelos ordenamentos anteriores, direitos como o respeito à dignidade da pessoa humana que se encontra concatenado com os princípios da liberdade e da igualdade. Entretanto, a CF/88 não foi tão moderna assim, a mesma acabou por ignorar várias transformações sociais que naquela época já estavam presentes, como por exemplo, a união estável de pessoas do mesmo sexo, tema que abordaremos agora.                                            
A Constituição de 88 respeita a opção sexual, consagra a igualdade, prima pela liberdade e consequentemente, respeita as diferenças. Desta maneira, se pergunte por instante, será que essas exigências são cumpridas na sua totalidade? Paradoxo exposto, responderíamos que não, mesmo a CF/88 cumprindo um papel importante para o respeito das garantias fundamentais elencadas em seu texto, a realidade é totalmente diversa, ainda aconteciam discriminações aos casais homoafetivos mesmo o ordenamento jurídico regulando penas a tais práticas, e mais, não existiam ou pelos menos, não haviam interpretações legais tangentes às questão dos homoafetivos em geral . Contudo, as relações entre pessoas do mesmo sexo se tornaram públicas e cada vez mais freqüentes, colocando em xeque a nossa Constituição quanto ao seu tratamento democrático com todos, independentes do sexo. Com isso, os casais do mesmo sexo passaram a reivindicar mais garantias ao sistema jurídico e tratamentos igualitários comparados aos casais de sexo oposto, como casamento, adoção, entre outras coisas. Em virtude dessa demanda, o ordenamento jurídico tinha o dever de agir de modo célere, o que não aconteceu. Foi apenas no dia 05 de agosto de 2011 que o Supremo Tribunal Federal se manifestou sobre uma matéria, reconhecendo por unanimidade, a união estável entre casais do mesmo sexo como entidade familiar. Não precisamos dizer que isso foi tratado com bastante polêmica.                                                                                                                      
A decisão do Supremo Tribunal Federal foi pautada em duas ações, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, respectivamente, a primeira buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, e mais, pediu que fosse estabelecido igualdade entre as uniões estáveis de pessoas de mesmo sexo, com pessoas de sexo oposto. A segunda, a ADPF 132, alega que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais com a dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade. As ações foram ajuizadas, respectivamente, pela Procuradoria Geral da República e pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral.                                                                                                       
O relator do processo, Ministro Carlos Ayres Britto foi crucial na sua fundamentação quando citou o pensamento kelsensiano, segundo o qual “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Ora, a nossa Constituição Federal não proíbe a união estável de gêneros iguais, sendo então passível de ser constituído e efetivado. Atentou ainda para o artigo 3º, inciso IV da CF, que veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual. Ayres Britto concluiu que qualquer depreciação dada à união estável homoafetivas colide e fere o inciso IV do artigo 3° da Constituição.                                                            
Devemos ressaltar a importante observação que fez o ministro Ricardo Lewandowski em seu voto proferido sobre a questão, sendo altamente taxativo, e utilizando uma interpretação bastante peculiar, de maneira que ele não restringiu o texto legal ou muito menos alargou, ou seja, ele apenas disse que a união estável é composta por homem e mulher (é a que está expressa em lei), sendo assim, o homem e a mulher podem autonomamente consolidar a união entre mulher-mulher, homem-mulher e homem-homem, segundo a hermenêutica (interpretação) do ministro Lewandowski.                                                                                                                
Os ministros Celso de Melo, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Ellen Gracie e Cármen Lúcia acompanharam o entendimento do ministro relator Ayres Britto, além disso, durante o julgamento foram ouvidos alguns vetores da sociedade pautados no interesse da matéria julgada, representantes religiosos e dos homoafetivos foram os participantes, que são juridicamente denominados de Amici Curiae (Amigos da Corte). Sendo assim, foi estabelecido em julgamento o reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo.                                                                                                 
Partindo do pressuposto lógico que é de conhecimento social toda conjuntura antes dita, e com esse novo marco histórico que foi a decisão da Suprema Corte, é importante traçarmos alguns fatos que estão intimamente ligados a tal decisão.                    Para que o ordenamento como um todo seja concreto e forte, faz-se mister a boa prática da imparcialidade em todos os ramos dos poderes do Estado, um poder judicial parcial é tão inseguro quanto um castelo de areia a mercê do vento. Nosso magistrado como um todo, deveria em tese, se abster totalmente de certos fatores que o levasse a formar um pré-conceito sobre determinado assunto, o que de certa forma é utópico de se dizer. Entrando no âmbito de nossa análise, por se tratar de um fato bastante controverso, inúmeros fatores foram cogitados como “parcializadores’’ das decisões. Entre tais, foram relevantes a religião, o fator social e natural.                           
A carta cidadã em seu preâmbulo explicita fielmente e sem margem para interpretações diversas, que o estado brasileiro é laico. Em tese, num estado laico fatores religiosos não deveriam interferir em outras esferas, se não as da própria fé, o que não se vê muito bem no estado brasileiro em que uma entidade religiosa consegue inferir no âmbito jurídico, pois suas crenças divergem da iminente evolução da sociedade. O que então um crucifixo faz pendurado no meio da parede central dos tribunais? Não existe separação entre as justiças comum e eclesiástica? Que insegurança jurídica tremenda isso causa.                                                                                  
A sociedade ao longo de sua constante evolução construiu lentamente valores que por serem abertamente aceitos foram considerados como certos (e não nos cabe aqui julgar esse mérito); entre eles o da família tradicional foi um dos mais consolidados durante os anos. Do ponto de vista evolucional, o relacionamento macho x fêmea é aquele apto a dar continuidade a qualquer espécie, o que não exclui, porém, a então adentrada na questão natural quanto à possibilidade de relacionamento entre animais do mesmo sexo, o que hoje é comprovado por pesquisas que algumas espécies de animais adotam o homossexualismo. Foi convencionado e aceito pela maioria que o homossexualismo seria errado,impróprio, uma anomalia do ser humano, e que por isso essa evolução da sociedade deveria ser estancada pelo direito, rotulando isso como uma atitude inconstitucional. Julgamentos como esses deveriam ser alheios ao direito e que felizmente a decisão hoje já consolidada, parece ter tido um papel secundário nas decisões.                                                                                    
O novo precedente criado pelo pretório excelso é, sem dúvida, reflexo da constante metamorfose que sofre a sociedade no passar dos anos, que carrega também, a mudança do sistema jurídico que seria inconcebível se o mesmo fosse constante, o aumento de homossexuais brasileiros é uma realidade incontestável e o direito tem a obrigação de abarcar todos eles, que concomitantemente tem o direito de se unir, formando o que hoje se consolidou como uniões estáveis. Tal decisão, já amplamente exposta no presente artigo, acarretará ao longo do tempo várias mudanças na vida dessa minoria. Direitos como herança, comunhão parcial de bens, licença médica e inclusão do companheiro como dependente em plano de saúde foram assegurados, apesar dos ministros terem optado por não delinear de início a extensão de tais efeitos.                                                                                              
A decisão não foi amplamente aceita entre a população em geral, já que de acordo com o senso feito pelo IBOPE, 55 % dos brasileiros são contra a união homoafetiva, índice muito elevado para um país tão multi-cultural como o nosso. Porém, tal fato não é de se causar tamanha preocupação, como em toda a história leva-se bastante tempo para mudar um conceito que até então era tido como verdadeiro, a tendência é que esse nível de repúdio diminua gradativamente, até que se chegue a níveis mínimos, em que em tese, teríamos uma sociedade mais igualitária, com total inserção de homossexuais no meio.                                                   
Essa decisão do supremo, sem dúvida alguma, trará significativas mudanças na sociedade de uma forma geral, pois mudará uma parcela da sociedade, em pleno crescimento, tal decisão sem precedentes, levou em conta, e isso é impossível de se negar, inúmeros fatores jurídicos, políticos e sociais como alguns bem discutidos na presente obra.                                                                                                            O que abre uma nova discussão totalmente paralela ao fato sub-judice, que é também de criar receio nos mais fervorosos crentes na justiça brasileira, seria até que ponto fatores ditos externos podem influenciar numa decisão de caráter tão abrangente? Se nessa decisão tão relevante esses fatores pesaram, e o que na verdade acontece em casos menores? A mídia teve parcela dessa decisão? Fatos como estes precisam ser muito bem analisados, para que não “sujem” o direito puro, em essência. As redes de telecomunicações deram notório enfoque na questão muito tempo antes do ápice da decisão, será que os julgadores conseguiram se tornar imunes a tais bombardeios que as mídias jogavam em toda sociedade? Bem, é fato que a mídia nesse caso foi um veículo de suma importância agindo como um catalisador nesse processo, instigando o pensamento crítico da sociedade brasileira, ou seja, levando para sociedade o ponderamento das questões em foco, e mais, expondo perante todos os casos de abusos e outras atrocidades que os casais homossexuais sofriam e sofrem, todavia, se transportássemos o caso para outra conjuntura, poderíamos nos defrontar com uma mídia que enaltecesse vontades próprias e até que limite suas vontades são cabíveis, afinal, como nos depararíamos com isso? Conseguiria nossa suprema corte se isentar de imparcialidades? É com essas e outras questões que esbarramos num crescimento pleno de um país que tem tudo para ser uma grande potência, e que para tal precisa de um sistema lógico-jurídico beirando a perfeição.                                                                                              
Pois bem, colocadas em tela algumas indagações sobre todo contexto da decisão do Supremo, é importante atentarmos para uma questão pertinente sobre tudo isso, religião versus união homoafetiva.  Segundo o artigo 5° da Constituição, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Analisando superficialmente o artigo citado anteriormente, é claro que a legislação trata igualmente todos os cidadãos, não permitindo a diferenciação social, sendo a igualdade alguns dos mais importantes princípios que norteiam o ordenamento jurídico brasileiro. Com isso, vem à tona uma questão: E qual o motivo de não se permitir a união estável entre casais do mesmo sexo? Alguns responderiam que seria a sua concepção religiosa. Bem, devemos salientar que o Brasil é um país laico, ou seja, não possui religião, isso não quer dizer que não respeite a religiosidade alheia, mas isso quer dizer que o Brasil tratará todos igualmente sem interferência de dogmas ou conceitos religiosos. Como a decisão sobre a união estável entre homoafetivos nos remete uma decisão jurídica, a religião nada pode interferir nas decisões legais, sendo assim, por mais que o Brasil seja um dos países mais religiosos do mundo, as fundamentações religiosas não serão consideradas no âmbito jurídico. A religião devia zelar pelo aspecto humano, pela igualdade, enfim, por tudo que tange o lado humanístico, não seria humano condenar uma pessoa por sua preferência sexual.                                                                  
O reconhecimento da união estável para homossexuais é uma redundância, isso não deveria ser colocado em julgamento em um ordenamento em que a igualdade já é estabelecida em lei. Portanto, percebemos e aplaudimos a decisão do STF que foi bastante feliz para o amadurecimento de uma legislação mais concreta e segura, primando pela liberdade e igualdade.


Delosmar Mendonça Neto
Renan Salomão

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